De intocveis, castas e darma: reconfigurando os direitos humanos em perspectiva hindusta.

                                                           Csar Augusto Baldi

Professor de Direito Constitucional II, na Ulbra/Cachoeira do Sul/RS. Mestre em Direito ( ULBRA/RS), Especialista em Direito Pblico (UNISINOS).

                                                          

1. O topos do darma e os direitos humanos

Raimon Panikkar estabelece, em relao aos direitos humanos, a seguinte metfora:

[...] os direitos humanos so uma janela atravs da qual uma cultura determinada concebe uma ordem humana justa para seus indivduos, mas os que vivem naquela cultura no enxergam a janela; para isso, precisam da ajuda de outra cultura, que, por sua vez, enxerga atravs de outra janela. Eu creio que a paisagem humana vista atravs de uma janela , a um s tempo, semelhante e diferente da  viso de outra. Se for o caso, deveramos estilhaar a janela e transformar os diversos portais em uma nica abertura, com o conseqente risco de colapso estrutural, ou deveramos antes ampliar os pontos de vista tanto quanto possvel, e acima de tudo, tornar as pessoas cientes de que existe, e deve existir, uma pluralidade de janelas?[1]

 Se difcil abandonar a referncia aos direitos humanos - uma vez que constituem nosso topos de referncia, necessrio, contudo, abrir este topos ao mximo, para permitir a emergncia de laos de encontro, de partilha e de enriquecimento mtuos com outras tradies humanas.[2]

A proposta, tal como j delineada acima, busca encontrar equivalentes homeomrficos nas demais culturas, encontrar conceitos, designaes ou cosmovises que manifestem preocupaes e aspiraes semelhantes ou mutuamente inteligveis.

Os topoi, com j nos ensinara a Retrica, so lugares comuns tericos, premissas fundantes da argumentao que, sendo autoevidentes, permitem a produo de troca de argumentos e, portanto, o dilogo. O deslocamento dos topoi fortes de uma cultura para o contexto de outra, contudo, torna-os vulnerveis, porque, recontextualizados, passam a ser vistos como meros argumentos, e no mais como premissas evidentes. . Da intitular-se hermenutica diatpica ( dia: atravs; topos: lugares comuns tericos).

Os argumentos de uma cultura - e esta prpria - somente podem ser reconhecidos como incompletos na presena de outra cultura; ou seja, a incompletude de uma cultura somente perceptvel luz de outra. Da a metfora panikkariana da janela por meio da qual visualizamos determinadas questes: a finalidade ampliar ao mximo a conscincia da incompletude mtua atravs de um dilogo que se desenrola, por assim dizer, com um p numa cultura e outro p noutra.[3]

Ora, como bem salientado por Rhoda Howard, se todas as sociedades tm uma concepo de dignidade humana e justia social, somente uma parcela a traduz em termos de sistemas de direitos, ao passo que a grande maioria rejeita a expresso da dignidade em termos de direitos inalienveis do ser humano fisicamente individualizado contra a famlia, a comunidade ou o Estado.[4]

Neste sentido, Panikkar sustenta que, na cultura hindu, a palavra darma , talvez, a mais fundamental e que nos pode ajudar a descobrir um possvel smbolo homeomrfico para a concepo ocidental de direitos humanos:

[...] a palavra Darma tem significado plurvoco: alm de elemento, dados, qualidade e surgimento, ela significa lei, norma de conduta, o carter das coisas, direito, verdade, ritual, moralidade, justia, retido, religio, destino e muitas outras coisas. Tentar encontrar um denominador comum para todos esses nomes na lngua inglesa no nos levaria a parte alguma, mas talvez a etimologia possa nos mostrar a metfora que se encontra na raiz de muitos significados da palavra. O Darma aquilo que mantm e d coeso e, portanto, fora, a qualquer coisa dada, realidade, e, em ltima anlise, aos trs mundos (triloka). A justia mantm o funcionamento das relaes humanas; a moralidade mantm a pessoa em harmonia; a lei o princpio organizador das relaes humanas; a religio o que mantm o universo em existncia; o destino o que nos vincula ao nosso futuro; a verdade a coeso interna de algo; uma qualidade aquilo que permeia algo com um carter homogneo; um elemento a mnima partcula consistente, espiritual ou material; e assim por diante.

Um mundo no qual a noo de Darma central e permeia quase tudo no se preocupa em identificar o "direito de um indivduo em relao ao outro, ou do indivduo frente sociedade, mas, mais do que isso, com a designao do carter drmico (direito, verdadeiro, coerente...) ou a-drmico de algo ou de uma ao dentro do complexo antropocsmico da realidade como um todo..[5]

Segundo o autor, o darma primordial, mas ele no existe acima e independentemente do svadharma, o dharma que inerente a qualquer ser, e que , ao mesmo tempo, o resultado do darma de todos os outros e uma reao a este darma. O ponto de partida no o indivduo, mas sim o complexo concatenado do real. O darma, assim, a ordem que mantm o mundo, mas o dever do indivduo defender seus direitos e encontrar um lugar na relao com a sociedade, o cosmos e com o mundo transcendental: com vistas a obter uma sociedade justa, o Ocidente moderno insiste na noo de Direitos Humanos. A fim de obter uma ordem drmica, a ndia clssica insiste na noo de svadharma.[6]

Vistos desta perspectiva, os direitos humanos so incompletos porque:

(i) no so somente direitos do homem individual, o que equivaleria a uma abstrao, mas so relativos ao indivduo como parte intrnseca das relaes que constituem o real, dentro de uma estrutura hierrquica;

(ii) no so apenas direitos do homem, mas so concernentes totalidade csmica do universo, onde os animais, os entes dotados de sensibilidade e as criaturas inanimadas esto implicadas na interao com os direitos do homem;

(iii) tampouco so somente direitos, mas tambm deveres, pois os dois aspectos so interdependentes;

(iv) os direitos do homem no podem ser isolados uns dos outros, compondo um todo harmnico entre si e no que diz respeito com o cosmos e com os deveres correspondentes, e, desta forma, no possvel estabelecer uma lista definitiva de direitos humanos;

(v) tampouco so absolutos, mas sim intrinsecamente relativos, como relaes entre as entidades.[7]

A concepo ocidental, vista deste ngulo, est vinculada a uma correlao simplista entre direitos e deveres, apenas garantindo direitos daqueles de quem pode exigir deveres, enquanto, na tradio hindu, eles esto intimamente ligados. por isto que, na concepo ocidental de direitos humanos, Ҏ impossvel garantir direitos s geraes futuras: no possuem direitos porque no possuem deveres[8] e, pelo mesmo motivo, a natureza no possui direitos: porque no lhe podem ser impostos deveres.[9] Como diz Panikkar: se falamos em leis da natureza, porque no de seus direitos?[10] Mais ainda: se utilizamos a expresso pluralismo jurdico, por que no pluralismo drmico?[11]

Tal cosmoviso provavelmente explica porque Upendra Baxi, tambm indiano, saliente que a concepo de direitos humanos tem excludo trs eixos temticos: (i) a correlao entre necessidades humanas e direitos humanos; (ii) a estreita vinculao ainda existente entre os direitos humanos e uma viso estatocntrica; (iii) a no-tematizao da violncia ou da via pacfica como meios de constituio de direitos humanos.[12] Visualizados nesta perspectiva, verifica-se a dificuldade de assumir-se que no somente os Estados podem violar os direitos humanos, mas tambm os particulares, a includas as grandes empresas transnacionais e, que, portanto, muito do que se pratica em nome da globalizao ou de bloqueios econmicos, causando morte de milhares de pessoas, poderia ser percebido como violao aos direitos humanos. Encontra-se, a, o germe para considerar, por exemplo, a dvida externa como nova forma de colonialismo, uma reivindicao que tem sido expressa, em foros internacionais, por vrios pases africanos tambm.

Por sua vez, vista, contudo, a partir do topos dos direitos humanos, a concepo drmica incompleta: (i) dada sua insistncia forte na harmonia, oculta injustias e negligncia totalmente o papel do conflito como caminho para uma harmonia mais rica; (ii) no estando preocupada com princpios da ordem democrtica, liberdade e autonomia, acaba por deixar o indivduo extremamente frgil para ser subjugado por aquilo que o transcende, (iii) tende a esquecer que o sofrimento humano possui uma dimenso individual irredutvel.[13]  Tem a vantagem, simultaneamente, de que, pode-se reconhecer que uma sociedade tambm pode sofrer, e, assim, a luta pelo fim do sofrimento no uma tarefa individualista, mas sim coletiva.

A partir do dilogo intercultural e da verificao dos pontos fortes e fracos de cada argumentao, a grande tarefa a desempenhar saber como reconfigurar os direitos humanos, na concepo ocidental, de forma a incluir as incompletudes detectadas. Da mesma forma, como reescrever a concepo drmica, de forma a ter legitimidade e sustentao cultural prpria (e, portanto, no imposio ocidental), reconhecendo suas incompletudes e pontos fracos? E, simultaneamente, o que este contato provoca de alteraes em ambas as concepes?  Ainda: se o darma mais abrangente que a noo ocidental de direitos humanos, o que esta pode alterar a concepo hindu ou permitir alteraes em outros campos da pluralidade de significado de darma?  Como bem salienta William Twining: [...] o dilogo produz mudana. Tanto a interao interna quando a intercultural sempre resultam em alguma coisa que significativa nova..[14]

preciso reconhecer, ainda, que a falta de legitimidade cultural uma das grandes causas de violao de direitos humanos, que, para muitas culturas, so tidos como uma cultura estranha. A pura imposio da cultura de direitos humanos, como costumeiramente defende-se no mundo ocidental - e o Ir, a Turquia e o Afeganisto so bons exemplos - no resolve o problema das violaes, antes os agrava. As formas de resistncia so sempre enraizadas culturalmente e so inteligveis, em princpio, dentro destes contextos culturais. Em alguns casos, os direitos humanos tero que ser, efetivamente, reescritos dentro de uma lgica distinta, como forma de terem uma legitimidade cultural que permita a defesa de parmetros de lutas emancipatrias.  O risco do etnocentrismo, considerando que somente existe uma forma legtima de resistncia - a ocidental, fica evidente, e no se trabalha em perspectiva intercultural se no se procura a inteligibilidade dentro da prpria cultura, sem partir dos pressupostos da nossa. Este um dos grandes desafios da hermenutica diatpica: tornar inteligveis e mutuamente frteis as diversas concepes e formas de emancipao.

2. A reelaborao do hindusmo: castas, intocveis e direitos humanos

Assim, por exemplo, usualmente, sustenta-se como problemtica a questo dos intocveis, chamados, atualmente, dalits. Ainda que a Constituio indiana de 1949 tenha abolido formalmente as castas, a discriminao remanesce no plano ftico.  Ashis Nandy entende que

possvel construir um hindusmo que veja a intocabilidade como uma aberrao ou como um acidente da histria; possvel construir um hindusmo que considere a intocabilidade como um produto necessrio de algumas partes da cosmologia hindu. A escolha metafsica e poltica.[15]

Sri Aurobindo, por sua vez, sustenta a necessidade de um esforo de contemporaneidade ao hindusmo: a essncia do homem csmico pode agora ser interpretada de um modo totalmente distinto, para responder s situaes da vida humana e, portanto, o sacrifcio do homem csmico no pode mais ser utilizado para glorificar valores particulares do pensamento teolgico que aceitam e reforam a violncia estrutural. No sendo necessrio atacar os fundamentos do hindusmo e tendo em conta que a tendncia ao exclusivismo inevitavelmente conduziria decadncia, o pensador hindu afirma que uma viso de futuro deve ter em conta os potenciais irrealizveis de cada ser humano, e a separao em quatro papis ou castas transforma-se em um episdio transitrio, devendo-se ver cada indivduo como, existencialmente, o repositrio de todas as qualidades humanas derivadas das quatro tradicionais divises sociais e, portanto, as quatro qualidades e papis criam uma nova forma de conscincia: cada hindu ser, simultaneamente, um brmane, um kshatriya, um vaishya e um sudra, refletindo, ento, a ordem csmica no profundo da experincia humana.[16]

Por outro lado, a adeso a outra identidade religiosa (budismo, islamismo, siquismo ou mesmo cristianismo) e a negao da tradio tm sido parte da estratgia dos dalits. Em alguns casos, mesmo a nova crena no responde adequadamente aos anseios de melhores condies: os que se convertem ao siquismo, por exemplo, so chamados Mazhbi Sikhs e tratados de forma distinta. Por este motivo, existe, inclusive, um movimento no sentido de formar uma nova identidade religiosa, a partir da ressignificao de figuras e smbolos que ressaltem a humanidade e liberdade: diferentes grupos de Punjabi dalits tem associado a si prprios com Valmiki (do pico Ramayana) e reverenciado Ravida (o intocvel bakhti poeta), ou invertido smbolos e tradies como forma de protesto, o que tampouco novo, uma vez que, durante sculos na ndia, as castas mais baixas recontavam a histria do Ramayana tendo Ravana como heri e Rama como vilo.[17]

Ao lembrar que, ainda que as castas, em princpio, sejam hereditrias, isto no determina esta posio de forma exclusiva, porque varivel conforme as caractersticas individuais:

[...] a qualidade natural de cada indivduo, independentemente de sua famlia de origem, e consiste no conjunto de suas efetivas tendncias e atitudes, que se desenvolvem no curso de sua vida e determinam sua capacidade de desempenhar certa funo na sociedade.[18]

Nesta cosmoviso hindu, cada pessoa um elemento essencial na harmonia do universo, e, desta forma, o desempenho de outra funo poderia abalar o equilbrio natural. Neste sentido, a crtica hindu vai no contra a hierarquia das qualidades, mas sim para a existncia, na sociedade ocidental, de classes, porque, ao contrrio daquela, esta arbitrria, baseada em critrios e fatores puramente materiais e, portanto, ilusrios, como a riqueza e o dinheiro.  Esta diviso em classes seria, ento, uma das causas principais das graves perturbaes e catstrofes que o mundo ocidental tem conhecido,[19] por ser fator de perturbao da ordem natural e social.

Arvind Sharma faz uma anlise completamente original da questo. Partindo da idia de que, com a mesma palavra ocidental (casta) - alis, criada pelos portugueses no sculo XVI - se incluem duas realidades distintas (varna e jati),  salienta que varnas constituem as quatro divises sociais:[20] a) brmanes, que teriam nascido da boca do Purusa (Ser Supremo) e, assim, desempenhariam as funes do esprito; b) ksatriyas, sados dos braos e que realizam as funes administrativas, executivas, judiciais e militares, e cujo representante mais elevado o rei; c) vaisyas, providos dos quadris e desempenham as atividades econmicas, em especial agricultura, indstria e comrcio; d) sudras, que, nascidos abaixo dos ps, deveriam executar todas as atividades necessrias  para a existncia fsica dos membros das demais varnas, ocupando-se das atividades materiais da sociedade. No que diz respeito jati, constituem grupos fechados, endgamos, baseados na idia da comensalidade, em nmero de cerca de trs a cinco mil, resultado da miscigenao entre membros das varnas, e, assim, o sistema de castas foi resultado da introduo, pelos indo-arianos (que adotavam varnas), ao sistema existente nos povos indgenas da ndia (que adotavam a jati), ou seja, a imposio do modelo dos primeiros, com as adaptaes dos segundos.[21] As jati derivavam do nascimento e eram geogrfica e lingisticamente delimitadas e, em muitos casos, as diferenas estavam presentes nas roupas, nos costumes ou no comportamento: uma jati autogovernada e responsvel pelas atitudes de seus membros.[22]  Por fim, ainda a categoria dos intocveis, que constituem um grupo separado, abaixo, e cujo contato era considerado poluidor ou contaminante e que pertenciam a distintas jatis.

Diante de realidades distintas, por exemplo, Gandhi, que era um hindu ortodoxo,[23] destacava que as quatro divises constituam deveres, e no privilgios, no havendo porque se arrogar um status mais alto para uma em detrimento da outra: todos nasceram para servir criao divina: um brmane, com seu conhecimento; um ksatriya, com seu poder de proteo; um vaisya, com sua habilidade comercial e um sudra, com seu trabalho corporal[24] Reconhecia, portanto, um varna darma, um dever da casta, no qual, contudo, a intocabilidade seria uma excrescncia da doutrina hindu. Adicionalmente aos deveres particulares ocupacionais, todas as pessoas teriam um darma comum de deveres fundamentais, dos quais os mais importantes eram contar a verdade (satya) e no causar dano aos seres viventes (ahimsa).[25]

Retomando o desenvolvendo das noes a partir dos textos clssicos do Hindusmo, Arvind Sharma afirma que, no Upanishad, possvel reconhecer que o darma est alm e acima da varna, no como um varnadharma, mas algo acima das varnas como darma e, a partir dos comentrios de Sankhara, nota que, quando as quatro varnas foram criadas, o foram com a inteno de restringir o exerccio de poder arbitrrio, a partir do darma, que, neste sentido, poderia restringir inclusive o rei. [26]

Procurando tornar inteligveis as castas aos olhos ocidentais, Sharma associa o conceito nacionalidade, que a dimenso cultural da existncia humana associada ao nascimento. Aplicado socialmente, o nascimento determinaria a questo da casta; politicamente, acarretaria a criao do Estado-Nao, e, ao mesmo tempo, se os grupos, organizados politicamente com base na casta, envolveriam uma externa hierarquia de naes, a organizao social baseada em castas envolveria uma hierarquia interna: a primeira mais fluida, a ltima mais ou menos fixa. Vista desta forma, a ndia, a partir da constituio do Estado-Nao, teria um relacionamento do cidado e do estado a partir da noo de casta.[27] Assimilada homeomorficamente noo de Estado-Nao, as barreiras do livre movimento das pessoas atravs das fronteiras nacionais seriam um paralelo das restries de castas, e necessitariam ser rompidas.[28]

A releitura vai um pouco mais longe. Partindo da noo de varna-sankara ou de jati-sankara, que significam os casamentos em oposio s linhagens das castas, salienta o fato de que os livros de direito hindu explicam as vrias jatis como resultado dos casamentos entre as diferentes varnas, o que parece indicar que, paradoxalmente, um grande nmero de varna-sankara aconteceu, a despeito de toda a investida contra, existente nos prprios textos hindus. E isto explicar-se-ia, a partir de uma leitura do Mahabharata, porque as distines de varnas, em geral, deveriam ser baseadas nas qualidades ou virtudes, o que poderia ser descrito como o princpio do equilitarismo proporcional: o status deve ser igual ou ser em proporo s qualidades ou qualificaes, no em funo do nascimento.[29] Por outro lado, relendo outro dilogo do mesmo texto vdico, era possvel ver que todos os seres humanos compartilham de atributos comuns: a fala (vak), a atividade sexual (maithunam), o nascimento (janma) e a morte (maranam) e, portanto, todos pertencem a uma mesma jati, a da raa humana, ou manava-jati. Desta forma, a categoria de jati expandida para incluir a humanidade inteira, rejeitando os direitos de uma especfica jati, pelo fato de todos os seres humanos serem similares e afirmando, tambm, os direitos de manava-jati da humanidade. Se a noo de varna conduz ao igualitarismo proporcional, a categoria de jati conduz a um igualitarismo radical.[30]

Por fim, uma outra via intermediria, no que diz respeito aos dalits, tem sido proposta. A partir das noes de carma[31] e darma, que so compartilhadas indistintamente por hindus, budistas, jainistas e siques na ndia, realiza-se uma releitura da tradio, para que o justo e o injusto, o certo e o errado sejam partes da harmonia pessoal crmica, e os dois conceitos-chave explicam todos os eventos, conduzindo o raciocnio para uma pessoal e social accountability.[32]

As regras, os usos e significados de carma e darma so fundados na mudana, inclusive quanto ao raciocnio de julgamento: rigidez na ordem de castas tem geralmente promovido excluso, enquanto a flexibilidade encoraja a incluso social e, portanto, com a uma nova ordem democrtica, atraem-se novas reinterpretaes nativas. Assim, os reformistas incrementam sua nfase no Ҝnico darma comum (sadharana dharma) sobre o darma especial (visesa dharma) das leis, rituais e deveres das castas.

O darma comum, desta forma:[33]

[...] baseado na identidade espiritual de todas as criaturas, tradicionalmente promove um senso partilhado de cuidado mtuo, de renncia violncia e ao dano, de busca pela eqidade.  Tradicionalmente, tem promovido atividades de bem-estar pblico e atrado reformadores progressistas. Os ativistas de direitos humanos encontram, aqui, uma convergncia com o impulso hindu local.

Khare distingue quatro categorias de reformistas: enquanto os ortodoxos reconciliam o situacional com o eterno, reformistas modernos procuram, seletivamente, abrir o eterno (sanathan) carma-darma e as castas sociais s mudanas democrticas, sociais, histricas e polticas e suas contingncias (caso de Vivekananda e Gandhi, j citado). Os reformistas radicais, por sua vez, refutam a acomodao de regras e condies de castas ou perseguem uma ordem moral alternativa (como o caso da viso budista de Ambedkar,[34] para os intocveis).  Por fim, um movimento ultra-radical rejeita inteiramente a autoridade moral de carma-darma para favorecer uma alternativa verdadeiramente externa (caso do comunismo de M. N. Roy). Apesar da diferenciao interna, o darma comum ainda providencia o solo mais ideologicamente forte dentro desta tradio, para todos estes marginalizados, fracos, explorados e reivindicadores.[35] No menos verdade, contudo, que, mesmo entre os dalits, a opresso das mulheres ainda maior, uma dupla subalternidade,[36] que ressignificada nestes termos:[37]

Ns podemos estar no grau mais baixo (atishudra), para a viso dos outros, mas no somos nem desprovidas de orgulho, nem de glria ancestral. Nossa religio no hindu, budista, islmica, crist ou sique. Ns pertencemos somente manava dharma- a religio da humanidade. Ningum est acima. Ningum pode nos tirar isto.

Vista a questo nestes termos, a tica tradicional de carma-darma serve a prticas e necessidades concretas, sem conduzir, necessariamente, aniquilao de castas, nem ao completo triunfo da ordem democrtica moderna e secular.[38]

Mesmo um autor ocidental como Michael Walzer, hoje defensor da guerra preventiva,[39] salienta que a justia est plantada nas interpretaes distintas de lugares, honra, empregos, coisas de todos os tipos, de tal forma que no levar em conta estas interpretaes (sempre) agir de maneira injusta[40] e, especificamente quanto aos intocveis, salienta que um visitante ocidental poderia sustentar aos locais que os seres humanos so criados na encarnao presente, e no em futuras.  Caso tivesse xito na argumentao, entrariam em perspectiva uma srie de princpios distributivos (dependendo de como as ocupaes fossem redefinidas segundo o novo entendimento das pessoas), porque a pureza ritual, ento, no estaria mais integrada ocupao dos cargos. Desta forma, sustenta que possvel um sistema de castas que satisfaa os padres (internos) de justia.[41]

Todas estas solues apontam, portanto, para uma concepo mestia de direitos humanos, seguindo uma intuio de Shiv Visvanathan: o meu problema como buscar o melhor da civilizao indiana e, ao mesmo tempo, manter viva minha imaginao moderna e democrtica, criando modernidades prprias e buscando uma poro das distintas imaginaes profundamente e digerindo-as de um modo distinto.[42]  Um exerccio que poderia ser feito por olhos ocidentais desta forma:

[...] como posso manter vivo em mim o melhor da cultura ocidental moderna e democrtica e, ao mesmo tempo, reconhecer o valor da diversidade do mundo que ela designou autoritariamente como no-civilizado, ignorante, residual, inferior ou improdutivo?[43]

Como destaca Ral Fornet-Bettancourt, em cada cultura h uma histria de luta pela determinao de suas metas e valores, o que gera, pelo menos como possibilidade, no uma, mas uma pluralidade de tradies. Desta forma, por trs de uma face que se nos oferece uma cultura como uma tradio estabilizada em um complexo horizonte de cdigos simblicos, de formas de vida, de sistema de crenas, etc, h sempre um conflito de tradies. Um conflito de tradies que, por sua vez, deve ser lido como a histria que evidencia que em cada cultura h possibilidades truncadas, abortadas, por ela mesma; e que, conseqentemente, cada cultura pode tambm ser estabilizada de outro modo como hoje a vemos.[44]

As estratgias culturais em que so repensados os direitos das mulheres, reconfigurados os valores das sociedades tribais, reavaliada a questo das penais cruis, a partir de um referencial islmico, da mesma forma que as lutas dos intocveis no universo cultural hindu ou as lutas para ressignificar os direitos de as mulheres serem ordenadas monjas na tradio budista tailandesa,[45] so exemplos claros de que possvel optar por uma via alternativa cultura estabilizada, seja recuperando a memria das tradies truncadas ou oprimidas na histria de seu universo cultural, seja recorrendo interao com tradies de outras culturas, ou inventando perspectivas novas a partir do horizonte das anteriores.[46] Um fenmeno que Ral Fornet-Betancourt designa como desobedincia intercultural e que passa pelo reconhecimento de que identidades culturais so processos conflitivos que devem ser discernidos, e no dolos a conservar ou monumentos de um patrimnio nacional intocvel.[47] Isto significa reconhecer que as distintas concepes aqui relatadas mostram a possibilidade e o direito de cada cultura justificar e interpretar os direitos humanos em seus prprios termos, mobilizando suas noes nativas de justia social e dignidade humana.[48]

Tomando como metfora a Torre de Babel, poder-se-ia dizer que, ao contrrio do que usualmente se entende, esta deve ser reconfigurada, de forma que no seja visto como castigo o fato de todos os povos serem obrigados a falar mltiplas lnguas, mas sim como uma ddiva pelo fato de, no se falando a mesma lngua, os mtuos silncios e falas terem que ser interpretados, e a prpria diversidade e pluralidade serem essenciais ao processo humano, o que demanda um dilogo intercultural. esse esprito bablico que pauta toda a hermenutica diatpica: no a busca de uma lngua ou cultura nica, mas sim a expresso das mais diversas vozes no mesmo processo social.

Sem dvida alguma, um grande desafio para os dias de hoje.

 

 



[1] PANIKKAR, Raimon. Seria a noo de direitos humanos um conceito ocidental? In: BALDI, Csar Augusto (org). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 206.

[2] EBERHARD, Christoph. Construire le dialogue interculturel: le cas des droits de lhomme. Disponvel em <http://sos-net.eu.org/red&s/dhdi/textes/eber15> , p. 15.

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepo multicultural dos direitos humanos. In: BALDI, Csar Augusto (org.) Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Op. cit., p. 257.

[4] HOWARD, Rhoda. Dignity, community and human rights. In: AN-NAIM, Abdullahi (ed.). Human rights in cross-cultural perspectives, a quest for consensus. Pennsylvania: University Press, p.91, 1992.

[5] PANIKKAR, Ramon. Seria a noo de Direitos Humanos uma concepo ocidental? In: BALDI, Csar Augusto (org). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Op. cit., p. 230-1.

[6] PANIKKAR, Ramon. Seria a noo de Direitos Humanos uma concepo ocidental? In: BALDI, Csar Augusto (org). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Op. cit., p. 232.

[7] PANIKKAR, Ramon. Seria a noo de Direitos Humanos uma concepo ocidental? In: BALDI, Csar Augusto (org). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Op. cit., p. 232-6.

[8] SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepo multicultural dos direitos humanos. In: BALDI, Csar Augusto (org.) Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Op. cit., p. 259.

[9] Idem, ibidem, p. 259.

[10] PANIKKAR, Ramon. Op. cit., p.223.

[11] VACHON, Robert. Droits de lhomme et dharma.  Disponvel em: <http://www.dhdi.free.fr/recherches/droithomme/articles/vachondhdharma.htm>. Acesso em 28 abr.2004.  Vide, tambm: EBERHARD, Christoph. Direitos humanos e dilogo intercultural: uma perspectiva antropolgica. In: BALDI, Csar Augusto (org). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Op. cit., p. 195.  No mesmo sentido, Masaji Chiba destacava que o Japo, por exemplo, tinha desenvolvido um pluralismo jurdico de direito oficial e no-oficial e, tanto no perodo antigo quanto no atual, de elementos jurdicos indgenas e transplantados, uma cultura legal nico entre os principais pases em sua regio cultural de carter chins ou de cultura confuciana, mas que outras entidades sociolegais deveriam ser reconhecidas: o pluralismo drmico para o direito indiano, incluindo os direitos hindu e budista theravada, o pluralismo da umma para o direito islmico, a justia informal para diversos direitos indgenas e assim por diante (CHIBA, Masaji.  An operational definition of legal culture in view of both Western and non-Western. In: FEEST, Johannes; BLAKENBURG, Erhard. Changing legal cultures.  Oati: International Institute for the Sociology of Law, p.104, 1997).

[12] BAXI, Upendra. From the human rights to the rights to be human: some heresies. In: KOTHARI, Smith & SETHI, Harsh. Rethinking human rights. Delhi: Lokayan, p. 151-66, 1989.

[13] SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepo multicultural dos direitos humanos. In: BALDI, Csar Augusto (org.) Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Op. cit., p. 259.

[14] TWINING, William.  Normative jurisprudence and cultural relativism. Tilburg-Warwick Lectures General Jurisprudence, 2000-1. Disponvel em:  <http://www.ucl.ac.uk/laws/jurisprudence/docs/twi_til_3.pdf> p. 36.  Acesso em 10 jul.2004.

[15] NANDY, Ashis. Evaluating utopias: considerations for a dialogue of cultures and faiths. In: NANDY, Ashis. Traditions, tyranny and utopias.  New York: Oxford University Press, p.7, 1988.

[16] SONDHI, M. L. Hinduisms Human Face. In: SONDHI, M. L. & SONDHI, Madhuri Santanam. The making of modern hinduism. New Delhi: Har-Anand, p. 22-3, 1999.

[17] KNOTT, Kim. Hinduism - a very short introduction. New York: Oxford University Press, p. 91-2, 2000.

[18] DELLAQUILA, Enrico. El dharma en el derecho tradcional de la India.  Salamanca: Universidad de Salamanca, p.39, 1994.

[19] Idem, ibidem, p. 40.

[20] Idem, ibidem, p. 41-2.

[21] SHARMA, Arvind. Hinduism and human rights - a conceptual approach.  New York: Oxford University, 2004, p. 50-1.

[22] Idem, Ibidem, p. 51.

[23] Ele mesmo se designava como sanatani, ou seja, um hindu ortodoxo, e era como tal que afirmava ser, simultaneamente, muulmano, sique e cristo, e admitia a mesma identidade plural dos que pertenciam a outras fs. O hindusmo tradicional, o chamado sanathan dharma, era a fonte de sua tolerncia religiosa, e no o secularismo, conforme usualmente se afirma. Neste sentido: NANDY, Ashis. A poltica do secularismo e o resgate da tolerncia religiosa. In: BALDI, Csar Augusto (org). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Op. cit., p. 406.

[24] SHARMA, Arvind. Hinduism and human rights - a conceptual approach, Op. cit., p. 55.

[25] Idem, ibidem, p. 57.

[26] Idem, Ibidem, p. 62-3.

[27] SHARMA, Arvind. Hinduism and human rights - a conceptual approach, Op. cit., p. 65.

[28] Idem, ibidem, p. 72.

[29] Idem, ibidem, p. 69.

[30] SHARMA, Arvind. Hinduism and human rights - a conceptual approach, Op. cit., p. 69-71.

[31] Carma entendido, aqui, como um princpio ativo-reativo de ao, no uma passiva racionalizao do status quo, nem uma derrota da racionalizao. KHARE, R. S. Elusive Social Justice, Distant Human Rights: Untouchable Womens struggles and dilemmas in changing India. In: ANDERSON, Michael R.; GUHA, Sumit. Changing concepts of rights & justice in South Asia. New Delhi: Oxford University, 2000, p. 217. Segundo Sinha, o darma um complexo de ao, conduta, regulao em vrias situaes e, assim, a fora suprema do mundo, e juntamente com carma conduzia a moksha, o ciclo da vida, morte e renascimento (SINHA, Surya Prakash. Non-Universality of Law. In: NANDA, Ved  P; SINHA, Surya Prakash. Hindu Law and legal theory. New York: New York University, 1996, p. 75.)

[32] Idem, ibidem, p. 203.

[33] SINHA, Surya Prakash. Non-Universality of Law. Op. cit., p. 204.

[34] Ambedkar (1891-1956) foi o principal pensador dalit e manifestou divergncias profundas com o pensamento de Gandhi, escrevendo, ainda, um projeto alternativo de Constituio indiana. Para ele, a intocabilidade no era um sistema religioso, mas sim econmico, muito pior que a escravido, que mantinha nos trabalhos mais degradantes 60 milhes de indianos (quando a populao era de 240 milhes) e negava, na prtica, a igualdade perante a lei como princpio, erigindo um permanente edifcio de subalternidade legitimada sobre eles.  Narrando as punies previstas no direito hindu, salientava que a tradio dos oprimidos ensina que o estado de emergncia no qual os oprimidos vivem no a exceo, mas a regra: o imprio do direito sempre coexiste com o reino do terror, e o tesouro cultural chamado hindusmo tem uma origem que no pode ser contemplada sem a existncia do terror. Nestes termos, os direitos assegurados na Constituio (como a proibio da discriminao e o trabalho forado), no constituam um limite ao poder do Estado, mas sim da prpria sociedade, e que o hindusmo deveria ser reconfigurado - ou ento abandonado - para valorizar a igualdade e dignidade de todos os seres humanos. Uma verso mais detalhada de seu pensamento possvel ser vista em: BAXI, Upendra. Emancipation as Justice: Babasaheb Ambedkars Legacy and Vision.  In: BAXI, Upendra; PAREKH, Bhikhu. Crisis and Change in Contemporary India. New Delhi: Sage, 1995, p. 122-49.

[35] BAXI, Upendra. Emancipation as Justice: Babasaheb Ambedkars Legacy and Vision.  In: BAXI, Upendra; PAREKH, Bhikhu. Crisis and Change in Contemporary India. Op. cit., p. 204-5.

[36] Idem, ibidem, p. 200.

[37] Idem, ibidem, p. 210.

[38] Idem, ibidem, p. 215.

[39] WALZER, Michael. A guerra em debate. Lisboa, Cotovia, 2004, em especial: O objectivo da guerra sobretudo a preveno: destruir a rede (terrorista) e impedir a preparao de ataques futuros. Na minha opinio no devamos pensar que a guerra uma ao policial, destinada a levar os criminosos a tribunal. Provavelmente no teremos provas para o fazer; e pode at acontecer que as provas coligidas por meios clandestinos ou pela fora das armas em pases distantes (...) no fossem admitidas por um tribunal americano; e provavelmente tambm no o seriam em tribunais internacionais (p. 152), porque, afinal, o primeiro objectivo da  guerra contra o terrorismo no olhar para trs e retribuir mas sim olhar em frente e prevenir (p. 153).

[40] WALZER, Michael. Esferas da justia; uma defesa do pluralismo e da igualdade. So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 432.

[41] Vistos de fora, da nossa prpria perspectiva, os brahmins indianos se parecem muito com tiranos - e o que sero se as interpretaes nas quais se fundamenta seu status deixarem de ser partilhadas. De dentro, porm, tudo chega at eles naturalmente, por assim dizer, em razo de sua pureza ritual (Idem, ibidem, p. 433).

[42] VISVANATHAN, Shiv. Environmental values, policy, and conflitct in India.  Disponvel em: <http://www.carnegiecouncil.org/media/709_visvanathan.pdf>, p. 21-2. Acesso em: 16 set.2004.

[43] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausncias e uma sociologia das emergncias. Op. cit., p. 761.

[44] FORNET-BETANCOURT, Ral. Transformacin intercultural de la filosofia. Bilbao: Descle de Brouwer, 2001, p. 185.

[45] Neste sentido, vide: SUWANBUBBHA, Parichart. Religious Education and Gender issues: difficulties of female ordination in Thailand. In: ALATAS, Syed Farid; GHEE, Lim Teck & KURUDA, Kazuhide. Asian Interfaith Dialogue: perspectives on religion, education and social cohesion. Singapore/Washington: Centre for Research on Islamic and Malay Affairs (RIMA)/The World Bank, p. 95-108, 2004.

[46] FORNET-BETANCOURT, Ral. Op. cit., p. 187.

[47] Idem, ibidem, p. 188.

[48] SENTURK, Recep. Sociology of rights.  Disponvel em: http://www.law.emory.edu/IHR/worddocs/recep2.doc